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A narrativa de Estela Bezerra: Parlamentar, negra, lésbica, feminista e injustiçada

Deputada Estadual da Paraíba comenta a Operação Calvário e fala sobre os desafios das lutas pelo fortalecimento da democracia e pela equidade de raça e gênero na política

Por Nádia Conceição

A força é uma das características da deputada estadual da Paraíba, Estela Bezerra, uma mulher negra, lésbica e com uma história de vida marcada pela socialização periférica.  “Eu sou uma pessoa feita de muitas características”. Estela acredita que a identidade é uma construção constante, iniciada ao assistir a atuação da sua mãe na luta pelos direitos trabalhistas.

Morando na periferia paraibana, Estela convivia com a ausência de transporte público e infraestrutura, o que a levou a participar de sua primeira mobilização por direitos, reivindicando melhoria nos serviços de transporte público. Mas muito antes disso, na infância, Estela conta que nunca aceitou a assimetria de gênero e que em sua casa os homens e as mulheres tinham trabalhos domésticos. 

A característica contestatória foi favorecida por uma infância “bem cuidada”, transformando-se em uma adoslescente revolucionária para os padrões da época. Entrou no movimento anarco punk, onde permaneceu dos 13 aos 18 anos. Também gostava de esporte, o que foi fundamental para ter uma educação diferenciada para a sua realidade social, por meio de uma bolsa de estudo em uma escola privada, assim como seu irmão. 

Mas o divisor de águas na trajetória política da deputada, que está em seu segundo mandato, é quando chega na universidade e tem um “encontro” com o feminismo, se envolvendo profundamente. “Eu não tinha muita atração por movimento estudantil quando entrei na universidade, aí é onde eu encontro o feminismo que vai me ajudar a entender toda aquela contestação que eu tinha, que não encontrava par em lugar nenhum”. 

Com dois dilemas para compreender: gênero e raça, Estela conta que compreendeu primeiro o de raça, durante a juventude, mesmo não tendo vivido na pele o racismo de forma consciente: “na Paraíba existe a invisibilidade, a forma de dominação ainda é muito a negação e eu identifiquei a minha cor, as discriminações, exclusões e obstáculos pertinentes ao racismo quando eu encontro também com o feminismo”, afirma.

Sua atuação como agente política ativa na cidade de João Pessoa (PB) foi fundamental e resultou na sua indicação pelo Movimento Feminista para atuar como Secretária Municipal de Políticas Públicas para Mulheres. A gestão foi marcada pelo compromisso de criar mecanismos de políticas públicas para mulheres, instrumentalizar as políticas de proteção e enfrentamento às violências, de saúde e de educação. Estela também atuou na Secretaria de Transparência Pública e na Secretaria de Planejamento e, em 2012, quando foi convidada para participar da disputa eleitoral. Ela elegeu-se Deputada Estadual duas vezes pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), e recentemente se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT), por onde está pré-candidata a Deputada Federal. 

E é neste momento que a deputada Estela Bezerra tem enfrentado o que chama de situação de constrangimento, pois é apontada como mentora intelectual de um esquema criminoso, juntamente com 35 outras pessoas. Apesar das medidas cautelares, não há impedimentos de realização de atividades de pré-campanha, contudo, a deputada relata ser um momento de ataques violentos à sua dignidade. 

Foto: Martha Idalina

“É urgente que a gente se exponha: mais mulheres e homens negros e negras, homossexuais e periféricas; e que outras identidades políticas, outros agupamentos sociais, consigamos ocupar a política; não apenas esses homens brancos, conservadores e tradicionais heternormativos. Essa é uma necessidade urgente do Brasil e da democracia”.

Em geral, as mulheres negras passam por um processo de reconhecimento de si, enquanto negras. Como foi seu processo de reconhecimento, e como ter uma mãe ativista dos direitos trabalhistas te ajudou?

Minha mãe sofreu muitos preconceitos e protegeu a gente de mais. O fato de ter um cabelo que não é crespo faz uma diferença no tratamento, eu não tenho os lábios e o nariz afilados, mas eu tenho um cabelo ondulado e isso dá uma dá uma aliviada e, neste caso, o seu tratamento é menos violento. No caso da minha mãe, não. Ela passou por esses tratamentos violentos por muitas razões: ela não tinha o nome do pai na certidão de nascimento nem na carteira de registro e a vida de mulher solteira é de enfrentamento de muitos preconceitos. Minha mãe viveu muitos preconceitos, que eram arraigados daquela época e tinha muito medo de que a gente passasse pelos mesmos processos, então nós fomos, de certa forma, preparados pela minha mãe com relação a qualquer discriminação. Aquela história de que a gente não podia andar mal vestido, senão vai ser mal tratado e, sendo negro, é mal tratado duplamente, essas coisas todas que terminam lhe educando. Você sabendo que tá no mundo e tem que ter uma armadura, se é educada para usar armaduras e eu até hoje eu uso essas armaduras. Aprendi muito cedo que você não pode ser rejeitado pela sua aparência. 

Então, eu nunca tive nada que me oprimisse muito, porque eu era muito insubordinada, mas fui preparada, e de certa forma absorvi e aprendi a viver de maneira positiva os cuidados que se tem que ter em um ambiente hostil, e quase todo ambiente é hostil para uma mulher negra. Eu fui muito oprimida do ponto de vista da sexualidade, da minha eroticidade, do meu jeito de me expor, de não chamar a atenção sobre isso. Foi fácil porque eu não era uma pessoa de muito expressar, eu sempre estive muito camuflada.  Talvez a própria orientação sexual também ajudasse a não usar do corpo e da eroticidade natural de uma adolescente, uma mulher jovem, pra expressar minha presença.

Último ano de mandato, como você o caracteriza e qual a expectativa? Existe pretensão de sair candidata à reeleição? 

Eu estou colocando meu nome para ser candidata a deputada federal. Eu fiz meu segundo mandato como deputada estadual e acho que cumpri a minha missão, aprendi a dar espaço para outras pessoas. A política requer uma mudança radical no Congresso Nacional, uma mudança de perfil, mais gente que vem dessa trajetória nossa, minha e de outras mulheres negras dentro da política, da democracia representativa. Eu entrei na política quando começou o golpe de Estado que o Brasil sofreu, em 2015. Aí a gente começa a assistir e a presenciar esses retrocessos iniciados com a discussão da redução da maioridade infantil, um dos primeiros debates dessa nova era, da era facista, da guinada de direita, não só no Brasil, mas em todo planeta e eu começo a vivenciar ainda mais forte a violência política. Passei os dois primeiros anos dirigindo a Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia. Eu fui a primeira mulher a responder por essa comissão, foi um grande desafio que eu consegui responder bem. Tive momentos históricos dentro da CCJ, como fazer, pela primeira vez, uma reunião conjunta entre a Comissão de Orçamento e a CCJ, para discutir de maneira mais ampla o orçamento, além de sabatinar o primeiro conselheiro do Tribunal de Contas do Estado.

Em 2016, iniciou o governo de transição de Michel Temer, um governo de retrocessos de perdas de direitos e muda completamente a dinâmica da minha presença na política porque eu começo a ir para as ruas defender a democracia, mas sentindo claramente que a gente tava perdendo, convivendo muito de perto com a violência e com muitas outras coisas que vinham junto. Nesse momento também ocorreu a morte de Marielle [Franco], que é uma coisa que choca todo mundo e deixou muitas de nós muito amedrontadas e arrasadas, pois o que aconteceu com ela pode acontecer com qualquer uma de nós. Isso não nos parava nem nos imobilizava, mas sabíamos a medida exata de risco que a gente tava correndo.

Em São Paulo as mulheres saíam contra o Eduardo Cunha, que era a peça fundamental do golpe, junto com as mobilizações que o PT fez e as negociações que se passavam na Câmara. Quem foi para as ruas, foram as mulheres da periferia de São Paulo, eram as mulheres negras e jovens e eu estava. A resposta a tudo isso veio desse grupo, que são mulheres negras, a maioria jovem, mas muitas mulheres com muito respeito à ancestralidade e a trajetória das mulheres anteriores. A resposta vem da periferia e desse feminismo negro, que faz um levante em São Paulo, em Salvador e na Paraíba. 

A minha experiência na Assembléia foi uma experiência de inserir temas como gênero e diversidade de gênero, diversidade sexual, igualdade, proteção ao adolescente, a bandeira de direitos humanos, a defesa do estado de bem estar social, além da política agrária, agricultura familiar, a valorização do salário mínimo, das políticas de compensação, de transferência de renda, como o bolsa família. No primeiro momento tinha o apoio do executivo, depois eles fragilizam e eu passo a ser, junto com Ricardo Coutinho (PT – PB) e com outras companheiras, vítima do modus operandis da lava jato no Brasil, que manipulou para prender Lula, e aqui, na Paraíba, tem a operação Calvário.

 “A mulher é inteiramente ridicularizada quando ocupa o púlpito. Existe gente que respeita, mas a maneira de desqualificar que é muito recorrente é de inibir, ignorar e desqualificar o uso da fala constantemente. É sistêmico”. 

E como foi essa “Operação Calvário”? 

O governador era acusado de montar uma quadrilha, com 35 pessoas, onde eu e outras duas mulheres, uma pessoa com deficiência e uma ex-prefeita de Conde – uma cidade importante e turística que faz fronteira com João Pessoa,  mas é bastante atrasada por conta da presença de oligarquias – fomos tratadas como as mentoras intelectuais dessa quadrilha. E quantas mulheres existem na mentoria intelectual na política? Então, nessa suposta organização criminosa, as mulheres são as mais poderosas do pedaço. Ricardo [Coutinho] com estas três mulheres. É de uma perversão e até de uma imaginação fantástica a construção narrativa, mas não chama a atenção de ninguém. 

A gente tá aqui, enfiado na lama, porque eles resolveram que era a solução mais fácil: vou colocar essas três mulheres aqui elas vão compor bem essa narrativa. Só no mundo ideal as mulheres estariam numa posição como essa, seja para o bem ou para o mal. E a gente tem passado por esse tipo de violência, que é muito mais sofisticada e muito ampla, porque não junta só a questão de gênero, mas também a questão de ser de periferia, de ser de esquerda, de defender  este conjunto de ideias dentro da política, é o principal motivo para a gente nessa situação. 

Porém, o fato de sermos mulheres, de sermos negras, e eu de ser lésbica, a violência foi muito maior comigo. Nós fomos presas e eu não podia ser presa. A Assembleia informou que eu não ia ser presa, mas o desembargador deixou que eu passasse uma noite inteira para poder, no outro dia, me expor à audiência de custódia. Eu passei 24 horas sob abuso do poder judiciário, que não tinha amparo legal para me manter e me fez passar constrangimento e exposição. 

Ele não faria isso se fosse um homem branco, ele fez isso com uma mulher negra e lésbica. Ele sabia em quem estava batendo e porque estava batendo, inclusive uma das coisas que foram expostas nesse processo foi minha orientação sexual. Essa violência, que é uma violência de gênero, é também racista e homofóbica, e simplesmente torna mais perverso e mais cruel o que tá acontecendo de forma mais ampla, dentro do cenário nacional, que eu espero que agora, em 2022, a gente dê resposta em urna. É por isso que eu me colocando como pré candidata como deputada federal, pois eu pretendo contribuir num espaço, numa arena mais ampla, onde eu também contribua com as grandes questões nacionais.

E qual o momento atual da “Operação Calvário”?

O status da “Calvário” é que no momento está em trânsito. O próprio desembargador relator [da Operação Calvário, no âmbito do Tribunal de Justiça da Paraíba, Ricardo Vital], encaminhou o processo para a Justiça Eleitoral, antecipando uma competência que é da instância superior, que seria do Superior Tribunal de Justiça ou do STF e, neste momento, não tem quem responda pela ação judicial. 

Faz dois anos e três meses que estamos denunciados, mas não se instaurou um processo. Eu, por exemplo, estou acusada de fazer parte de um núcleo intelectual de uma grande organização criminosa que tem 35 pessoas. E, até o momento, o Tribunal de Justiça não acatou a denúncia e instruiu o processo. O desembargador relator recebeu a denúncia, fez diligência sobre o que o ministério público pedia e hoje nós vivemos a dois anos e três meses tentando derrubar medidas cautelares que cerceiam a nossa liberdade e que representam na verdade uma condenação prévia de que não podemos sequer nos defender de um processo que não está instaurado ainda. É uma situação de muita insegurança. 

No último dia 22 de março, o ministro Sebastião Reis Júnior, do STF, concedeu afrouxamento de uma série de medidas cautelares impostas no âmbito da Operação Calvário, que limitavam a sua locomoção. Essas ações têm implicações sobre seus direitos civis e políticos?

Eu ainda não tinha contestado as minhas cautelares, porque as outras cautelares eram mais graves e nesse momento eu tinha garantido uma série de movimentos por conta da minha condição política, mesmo assim cerceava minha liberdade política, que era uma coisa fundamental para que eu faça a minha missão a qual eu fui eleita. Consegui neste momento, que também é de pré-campanha, poder me movimentar com mais segurança sem nenhuma arbitrariedade que venha cercear ainda mais a minha liberdade. Eu acredito que ainda conseguirei mais afrouxamento das cautelares, porque o justo e o certo seria não haver nenhuma cautelar até que houvesse o processo e eu pudesse me defender, e aí sim, ter um processo encaminhado como prevê o direito brasileiro e a constituição magna de nosso país. Essa insegurança jurídica talvez seja um dos grandes pilares do momento que nós vivemos de descrédito nas instituições brasileiras.  

Existe alguma possibilidade dessas medidas interferirem na sua candidatura no pleito deste ano?

Isso não afeta o meu desempenho na campanha, ao contrário, agora eu tenho segurança, inclusive de fazê-la transitando em espaços que está uma das grandes lideranças políticas da Paraíba, Ricardo Coutinho, e também a deputada Cida [Ramos] e a ex-prefeita do Conde Márcia Lucena, acho que isso me tranquiliza. 

Com relação às cautelares, a questão de ter que comunicar o deslocamento, eu também vou pedir extensão, porque o entendimento do STF é que não precisa haver sequer comunicação como já foi conseguido pelo advogado Francisco, estendido a Ricardo [Coutinho] e a outras pessoas que também estão em cumprimento de medidas cautelares. 

Eu tenho vivido essa situação com muito constrangimento, porque de qualquer forma, nós somos julgados previamente e condenados também, pois existe a condenação do único patrimônio que eu tenho. Eu não sou uma pessoa de patrimônios materiais, não sou herdeira de bens materiais, eu sou herdeira de valores e de princípios que me constituíram como pessoa, como cidadã. Todo esse processo basicamente mata a minha dignidade, a minha reputação, e isso é muito ruim, isso me faz muito mal a qualquer pessoa, tem sido uma angústia esse tempo inteiro ter que viver com isso. Eu ando de cabeça erguida porque fui educada para resiliência, para resistir a todo tipo de ataque, mas isso realmente tem sido o nosso tormento. Acho que nunca ninguém escolheu tão bem um nome de uma operação, realmente a gente se sente crucificado. Sem nenhuma necessidade de me comparar a Cristo, mas a história de Cristo é a história de muita gente, que é condenado injustamente e nesse caso não há nem condenação, pois não há nem processo ainda.

Agora mudando de asunto, você acredita que o assassinato de Marielle contribuiu para que em 2020 tivessem mais candidaturas de mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+?

Contribuiu, porque é um pouco daquele sentimento que eu estava falando, que existia um medo, mas existia também uma vontade de ir para a rua, assim: eu vou morrer, mas não vou morrer aqui parada e não vou viver qualquer vida, então houve um levante. A gente se uniu, o PSOL foi um partido que fez um trabalho muito importante nesse processo de resistência ao reacionarismo que se instalou no Brasil. Marielle era do Rio de Janeiro mas ela se tornou um sentimento nacional, o sentimento de revolta, de solidariedade, de resiliência. Ela hoje vive entre muitos de nós, esse sentimento do que Marielle representou e o que se fez com ela não vai vencer, tá hoje no nosso sangue. Então eu me sinto assim, que todo resultado que a gente tem hoje e até meu movimento de querer ir para a Câmara Federal. A gente precisa continuar nesses espaços, precisa continuar transformando esses espaços e, é óbvio, que isso se faz com um preço, mas a gente acredita que tudo que tá passando hoje é necessário para que possa melhorar as relações futuras. 

Eu lembro que quando a gente lutava pela questão do abortos, em casos previstos em lei – porque é uma luta ampla… Eu, por exemplo, luto para que ninguém possa morrer por conta de um aborto inseguro, também não apoio o aborto como método contraceptico, luto por políticas contracepticas, equânimes, quando os homens também se sintam responsáveispelo pelo planejameto reprodutivo e não apenas coadjuvantes na reprodução. Então eu sabia que algumas das lutas eu ia empenhar, mas nem eu mesma, pessoalmente ia desfrutar delas, e que só as gerações futuras iriam desfrutar: o direito à educação e o direito à liberdade é uma coisa que tem que mudar, independente que seja tangível para você naquele tempo histórico. Eu acredito que essas lutas mobilizam muito e a Marielle, de certa forma, catalisou o movimento e fortaleceu esse sentimento. O aumento das mulheres negras nesse processo foi muito retroalimentado por esse fato. 

Eu sinto que precisa ter vigilância constante, porque o Brasil sofre de uma desmemória, de uma dormência, de falta de capacidade de fazer conexões, por isso que essa Série de Entrevistas [Pretas no Poder] é tão interessante, porque ela registra o que está acontecendo e que tem importância na atualidade, a gente tá pelo menos disputando as narrativas. 

Foto: Martha Idalina

Quais desafios você enfrentou por ser uma mulher negra e lésbica dentro desse processo eleitoral e quais foram as suas referências dentro do campo da política? 

Minha principal referência é um homem branco. E, na verdade, eu entro na política nessa gestão de Ricardo [Coutinho – ex-governador da Paraíba], um cara muito sensível, com compromisso com vária bandeiras, dentre elas, a de gênero, da diversidade e a do reconhecimento e enfrentamento ao racismo, que é a bandeira mais difícil de ser empenhada, porque uma pessoa negra que não se auto reconhece, apagando dela a negritude. Nesse sentido, a invisibilidade talvez seja o maior obstáculo. Entender o genocídio negro, por exemplo, foi muito importante porque as pessoas perceberam que quem tava sendo morto não era só meninos pobres, pois pobreza e negritude no Brasil tem um laço de sustentação, de dominação e de racismo.

A primeira mulher que tenho como referência é a Benedita da Silva. A Benedita foi deputada, governadora do Rio de Janeiro e em 2000 a gente a trouxe num encontro feminista. Mesmo não participando ainda da política partidária, ela me chamou muita atenção. Benedita é uma entidade, a gente chega perto dela parece uma pessoa ancestral, uma figura onírica, a própria imagem dela é muito forte. Ela foi uma dessas figuras que se expôs, uma mulher negra, de favela que aqui no espaço de poder, tem carisma e tem uma missão enorme de transformar material e simbolicamente esse lugar. 

A representação é importante, por exemplo, eu tenho muito cabelo com pouco volume e aí o povo dizia ‘você tem que melhorar a sua aparência, você tem que alisar’. Então eu apareci uma, duas ou três vezes em entrevista com cabelo liso e fiquei chocada comigo. Eu maquiada e com cabelo liso, eu que nunca gostei de fazer cabelo, de fazer nada, então eu disse: ‘eu não posso fazer isso comigo’. Eu não posso fazer uma violência dessa com minha própria imagem e dizer para as meninas que têm cabelo como o meu, naturalmente desalinhado, que elas não podem mudar o cabelo delas. Não faz sentido assim. 

Isso fez e faz muita diferença, a influência que recebi de uma figura como a própria Benedita da Silva, que era a figura de mulher negra proeminente com mais visibilidade que eu vi. Reforço aqui também que a presença de Dilma [Rousseff] na política fortaleceu muito a presença das mulheres, na mesma medida que Marielle impulsiona as mulheres negras. Eu acho que as mulheres como um todo são muito impulsionadas ao campo da política com a presença da primeira presidenta, que também me influenciou. Agora tenho muitas influencias do movimento feminista que não eram da política, mas o pensamento do movimento feminista e me deu muita força para num ambiente político e discutir com os homens ideias tradicionais, a partir do meu lugar de fala e da minha elaboração, muitas vezes desconstruindo os pensamentos deles. 

Como você percebe e como acontece a violência política dentro das instituições em que você atua? 

Ela acontece de várias maneiras. A primeira violência contra as mulheres no campo da política, seria a essência da política, que é a fala, a capacidade de transmitir ideias, de influenciar, de confrontar, de convencer. Então, a primeira violência é a desqualificação da fala. A política é a arte do convencimento, da conciliação, da compreensão, do diálogo que constrói o entendimento, e que modifica os processos e as soluções para uma plano onde todo mundo se reconheça. Política é isso, convergir, debater, confrontar e tomar decisões razoáveis. As mulheres que tem um hábito muito grande de dialogar e de uma audição muito boa, faz muito bem à política.

As mulheres fazem política na associação, nos sindicatos, nas agremiações, mas elas estão sempre em papéis secundários. A mulher quando fala alto ou quando fala forte, dizem que ela quer ser homem. Comigo já disseram isso e eu sempre fui reconhecida por ter um raciocínio lógico, claro, transmitir bem as ideias e isso, antes de estar na política. 

Esse é o tipo de disciminação que as mulheres mais sofrem, as mulheres são proibidas de falar publicamente, a fala delas é invisibilizada e quando falam mais forte, são chamadas de loucas e descompensadas, então, a maior violência é negar a elas o direito de expressão. 

É agressividade contras as mulheres é sempre usando a questão de ordem moral, se é casada desqualificam o marido, chama o filho de viado. Os ataques aos homens acontecem na ordem da política, dava até um estudo isso, com as mulheres é todo na ordem da moral, da sexualidade do corpo, do marido, do filho. 

Estamos vivendo um momento muito intenso de criminalização da política. Você acredita que mais mulheres, mulheres negras e pessoas que têm pautas como as suas, podem qualificar o debate político? 

Eu acredito. Agora eu penso também que é preciso ter mais consciência de classe e mais consciência de posição antirracista. Eu não acho que essa bandeira está inteiramente absorvida até pela própria população negra que exerce algum espaço de poder. Por exemplo, você observa que as igrejas pentecostais e neopentecostais têm um número imenso de pessoas negras que ocupam espaço de poder, porque as estruturas de religiões também são estruturas, é uma instituição poderosa. Muitas violências acontecem por conta dessa instituição e de muitos homens e mulheres negras nesse processo sem conseguir ter consciência do racismo. É uma das instituições que mais favoreceu a eleição de Bolsonaro, é um grande amparo. Não é à toa que a Rede Record é de Edir Macedo [fundador da Igreja Universal do Reino de Deus]. Grande parte da Assembléia de Deus, uma religião neopentecostal, é formada basicamente por pessoas negras, porque ela é de periferia. E é uma instituição que atua contra os próprios negros e negras, e fortalece o racismo. 

Minha chefe de gabinete [Nézia Gomes], jornalista também, tá fazendo mestrado sobre a participação das mulheres na política e ela escreveu um artigo: A Paraíba ainda masculina: uma radiografia da presença das mulheres na política da Paraíba, que usou informações do Tribunal Superior Eleitoral, onde mostra que a Paraíba tem 437 mulheres no espaço de poder, 37 prefeitas, 52 vice-prefeitas, 348 vereadoras – brancas são 47,6%, pardas são 45,77%, e pretas são 3.66%, que equivalem a 16 mulheres. Dessas 16, tem uma figura, Jô Oliveira, uma vereadora de Campina Grande, que é a primeira mulher negra, retinta e de cabelo crespo, uma assistente social, que a mãe foi trabalhadora doméstica e tem consciência da negritude, o que reforça que grande parte dessa composição de mulheres negras têm vivência de preconceitos, têm uma trajetória diferenciada que, mesmo na comunidade delas, conseguiram fazer um outro caminho. Então, a gente tem um trabalho para fazer, que eu também tô muito tentada e já comecei a fazer alguns movimentos de reunir mais essa mulherada para conversar sobre estes temas para fortalecer mais isso, que é muito novo no Brasil. 

A gente não imaginava que o racismo tivesse tão absurdamente vivo como ele . Ninguém imaginava a quantidade de mortes, de impunidade. A gente sabia disso, tava alí maquiado, na história das drogas, na história da criminalidade, mas não se tinha no Brasil o fato de você entrar numa loja e ser morta simplesmente porque era negra; andando no parque e levar uma sova por que montado numa bicicleta, porque acharam que a bicicleta era roubada; entrando no seu próprio carro e um casal no meio da rua achar que pode bater. A gente não tinha, pelo menos não lembro, de acompanhando narrativas nessa realidade. Isso acontece agora, recente. Não é que o racismo não existia, é que essas pessoas não estavam confortáveis para expressar essa violência que estavam ali vivendo. Então, isso agora explícito e é muito dramático quando a gente tem que viver isso e, ao mesmo tempo, dá um trabalho aí para que a população entenda, interprete e se posicione com relação a esse fenômeno da violência e do racismo. A gente precisa aproveitar esse momento para poder crescer com consciência. Agora mesmo essa entrevista me ajuda a refletir, a me posicionar na meta. 

Foto: Martha Idalina

Como foi o processo eleitoral com relação à violência, e nesse tempo de mandato, o que você sofreu e o como pensa em se proteger para a corrida eleitoral este ano? 

Eu tenho uma dimensão espiritual que eu não abro para minha proteção: “que meus inimigos tenham olhos e não me vejam”. Eu sou filha de Ogum e tenho bastante fé e crença que eu tenho uma missão no mundo público, sendo que essa missão não vai ser atropelada por nenhuma fatalidade. Hoje eu tenho que me proteger muito, vou precisar de muita ajuda,  sobretudo com relação à disputa das narrativas da comunicação mesmo, poder ter minha própria história contada, porque, de repente, tem horas que você abre o google e lá um bocado de matéria sensacionalista, a exemplo da “Operação Calvário”, da corrupção. Tenho que ter outros lugares que mostram minha própria história, é uma parte importante da proteção para não ser roubado na sua própria trajetória. Por isso é importante ter espaços de comunicação, porque são em outros lugares que se constrói as suas narrativas, não na imprensa rasa, que faz a cobertura política a troca de moeda. Isso é fundamental e colabora até para essa desconstrução da história hegemônica. 

Eu tenho uma equipe e tenho uma maneira de transitar pelas comunidades que me dá uma certa segurança. Eu não vou a lugar que eu não sou bem quista ou que tem qualquer tipo de ameaça, mas eu transito muito nos territórios e espero grandemente que a gente não passe por situações como as que Marielle passou. A milícia cresceu no Brasil inteiro, aqui no interior da Paraíba, nas divisas do estado tem a presença da milícia. Existe milícia em todos os lugares. Ela aparece com as ausências: do Estado, da segurança pública e, nas ausências, quem comanda é o poder local e o poder local usa de violências para ocupar os espaços e excluem os direitos. Estamos submetidos a esse processo, mas eu consigo um reconhecimento que eu tenho nos territórios, nas relações de afeto e nas relações políticas e você traz as coisas baseadas na informação. 

A gente vê uma migração da violência para as redes sociais. Como tem sido isso no seu mandato? 

Tem uma coisa que tem me incomodado, aquela fotografia de preso, a tradicional, que não pode sair da minha história, porque é a minha fotografia de presa política, não tem como. Eu acredito que ainda terá uma revisão, a fotografia de Lula como preso político, a minha e de Ricardo Coutinho, mas o que ocorre é que essa fotografia foi descontextualizada, além de ser proibida a divulgação, mas a minha circulou em um bocado de blogs desses bem terríveis e que usam termos bem ruins. Eu precisei fazer um processo administrativo contra essa divulgação, mas nunca andou, mesmo eu sendo deputada. 

Mesmo sabendo que isso não apaga que aconteceu e que essa é uma das reconstruções de leituras que precisam ser feitas sobre o momento histórico, não dá para apagar, porque eu fui realmente presa, mas dá para dizer em que conjuntura foi e como se deu, pelo menos deixar registrado em algum canto que ela não tem impacto nem combina com a narrativa que tá ali, sendo contada. Eu agi muito pouco, porque de fato foi muito violento, me deixou com a moral muito abalada, porque chegou na minha casa, na casa de minha mãe e ela tava com alzheimer, ainda tá, na fase severa, final. É uma violência que atuou sobre mim porque eu estou no espaço da política, sem isso eles não conseguiriam me colocar em qualquer tipo de narrativa. 

Aqui [na Paraíba], eu tentando identificar um eleitorado que acredita, e eu acho que é o eleitorado suficiente, que a gente pode e precisa ter uma representação na Paraíba. Eu gostaria muito de me incluir sem tirar um cargo no campo de representação de esquerda, gostaria muito que fosse mais uma no campo de esquerda para contribuir, porque a Paraíba tem uma bancada de pelo menos 75% de representação oligárquica hegemônica, inclusive, uma mulher, que é a Daniela Ribeiro (PP-PB), da tradição do latifúndio, que mandou matar Margarida Alves [que inspirou a Marcha das Margaridas]. É uma situação bem delicada a representação da Paraíba. 

Como os partidos têm se posicionado na defesa das mulheres negras que sofrem violências políticas? Os partidos têm-se demonstrado aliados? Existe o diálogo com relação a ampliação da participação das mulheres?

Eu acho que a questão do gênero e a questão racial começam a ter importância nas regras partidárias. O fato do voto de negros e negras ou de mulheres contarem dois votos para o fundo partidário, é uma boa medida, mas a cultura partidária é muito patriacal, e os partidos ainda são muito masculinos. Você ver uma diferença no PSOL, no PCdoB, que hoje tem uma presença majoritária das mulheres no comando, e é muito comum as mulheres irem para o comando em declínio. O PCdoB, num declínio de se manter como partido, teve que fazer uma fusão, agora que vai fazer a federação, porque sem isso não sobrevive. O PT tem uma diferença que teve uma presidenta e ela era muito ligada em fortalecer a participação das mulheres e eu já entrei no PT com esse diálogo.

No PSB, onde eu também integrava o PSB Mulheres, sempre tava de olho em fortalecer candidaturas das mulheres, mas acho que o PSB talvez seja o partido que tenha uma cultura mais fragilizada da presença das mulheres. Falo isso porque, até pouco tempo, eu estava no PSB, então até no campo da esquerda a presença das mulheres ainda precisa ser valorizada e das mulheres negras ainda mais.

E a verdade é que eu não vejo ainda, por parte dos partidos, uma absorção inteira às candidaturas de mulheres e da diversidade, seja racial ou de orientação sexual, como prioridade. O PSOL talvez seja o partido que mais conseguiu fazer isso, aliás, é a grande revolução que temos. Você tem a Erika Hilton,  a Duda Salabert, que é vereadora de Minas Gerais, que é trans… tem um bom grupo de pessoas de muita excelência aparecendo, isso é uma grande revolução. Mas eu entendo e acredito que, por exemplo, o próprio PT ainda precisa valorizar mais a presença das mulheres. Aqui mesmo na Paraíba nunca teve uma deputada federal, uma mulher do PT ou da esquerda, não tem nenhuma mulher do campo da esquerda, as eleitas sempre foram mulheres das oligarquias.

Foto: Martha Idalina

O que você espera do cenário político da Paraíba em 2022? 

Eu espero que a Paraíba eleja Lula [Presidente], eleja Ricardo [Coutinho]. Eu espero que a Paraíba me eleja, eleja a deputada Cida [Ramos], espero que a Paraíba consiga modificar o perfil da Assembleia Legislativa, mas sobretudo o perfil da Câmara Federal. O maior desafio da política no Brasil é eleger Lula e também eleger um congresso menos tóxico. Não acredito que será um congresso do campo de esquerda, mas as federações podem ajudar muito a ampliar a representação. É preciso derrotar Bolsonaro, derrotar todos os filhos e todos os representantes dessa ultradireita. Eu acho difícil que isso aconteça, acho que ainda haverá reminiscência dessas ascensão do fascismo no Brasil, dentro do parlamento e do Congresso Nacional, mas eles precisam ser muito pequenos, e não muito grandes, como são hoje.

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