“Não dá para falar da saúde da população negra, sem falar do racismo enquanto um determinante”, afirma Maria Inês Barbosa, Doutora em Saúde Pública

Maria Inês teve um papel importante na formulação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)

27 de outubro é o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra. A data foi estabelecida em 2007 e tem por objetivo chamar a atenção para as demandas específicas de saúde da população negra, bem como ampliar o debate e articulação em torno do tema para fortalecer a agenda de enfrentamento ao racismo no Sistema Único de Saúde (SUS).

Dois anos após a criação do Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), em 2009, como resultado de uma luta coletiva de mais de 20 anos do movimento negro brasileiro pela democratização do acesso à saúde pública e gratuita. A PNSIPN nasce com o objetivo de combater a discriminação racial SUS e promover a equidade em saúde para a população negra. 

Essa política reconhece institucionalmente, pela primeira vez, o racismo como um marcador de desigualdades, tanto no que diz respeito ao acesso à saúde e qualidade do atendimento, quanto nas condições que podem levar ao desenvolvimento de patologias que atingem especificamente a população negra brasileira.

No contexto da luta para elaborar e implementar a PNSIPN, estava Maria Inês da Silva Barbosa, mulher negra, Assistente Social, Professora e Doutora em Saúde Pública. Maria Inês integrou a primeira gestão da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, e através desse espaço, articulou junto à própria secretaria e à sociedade civil, a formulação dessa política. Em entrevista, ela nos conta um pouco sobre a incidência do racismo sobre a vida da população negra, os avanços alcançados através da PNSIPN e os desafios no campo da saúde pública para a população negra. Confira abaixo!

De que forma o racismo atua sobre as condições de saúde da população negra no Brasil?

Maria Inês: Primeiro, é importante a gente entender os determinantes sociais em saúde. Você tem tanto o  aspecto biológico em si, mas você vai ter como isso vai afetar os diferentes corpos, diferentes sujeites, sujeitos e sujeitas na sociedade. O que pode ser considerado um problema de saúde pra um, vai acabar não sendo pra outro, porque esse outro vai poder se afastar do serviço, vai poder se cuidar enquanto o primeiro vai ter que ir trabalhar independentemente das suas condições. Então, você tem esse biológico influenciado e impactado pela sociedade em que ele está inserido. 

Dessa forma, é importante chamar atenção de que quando nós estamos falando de saúde da população negra, nós não estamos dizendo que os nossos corpos são muito distintos dos outros corpos, biologicamente falando. Não é que sejamos muito distintos e por isso precisamos de uma atenção distinta. Nós estamos chamando a atenção porque temos o impacto de uma sociedade em que o acesso às condições de vida, de moradia, de trabalho, de acessibilidade, difere em função dos determinantes sociais, seja o patriarcado, seja a exploração de classe, seja por você ser negro, indígena, cigano ou cigana. Isso vai afetar o acesso que você vai ter, o cuidado que você vai ter, como você vai ser enxergado, como vai ter assistência, de acordo com aquele seu pertencimento. Então não dá pra falar da saúde da população negra sem falar dos determinantes sociais em saúde e do racismo enquanto um determinante.

Quando você pega o conceito da 8ª Conferência Nacional de Saúde [1986], que define a saúde como o mais completo bem estar físico, mental e espiritual, e coloca isso numa sociedade que explora, que discrimina, paga um mau salário, onde as pessoas não têm a habitação adequada: é disso que nós estamos falando, quando falamos de saúde da população negra. 

Quando verificamos que, por exemplo, nós [pessoas negras] temos uma incidência maior de hipertensão, que é multifatorial, um dos fatores é que vivemos em alerta, qualquer um, qualquer uma de nós. A gente não anda tranquilo, a gente está sempre preparado para ser discriminado. 

É disso tudo que estamos falando, quando falamos em saúde da população negra. 

Qual foi a sua participação direta na elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e quais foram os avanços a partir da  implementação dessa política? 

MI: O avanço foi justamente o reconhecimento de que o racismo é um determinante social na saúde. Isso não fazia parte da linguagem, da preocupação dentro do sistema único de saúde. Hoje em dia se fala do racismo, do impacto do racismo na população negra, e isso é uma vitória nossa.

Nós conseguimos que a política fosse aprovada, ela está institucionalizada, ela existe dentro da burocracia. Logramos que se tivesse cursos sobre saúde da população negra nas universidades. Temos assento no Conselho Nacional de Saúde. Tudo isso foi um passo importante. 

Eu participei desses processos pensando a saúde da população negra quando dei aula e seguia esses temas na docência. E enquanto participei do processo da Conferência de Durban [Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata das ONU (Nações Unidas), realizada em 1991, em Durban, na África do Sul], onde no processo preparatório, um dos temas foi saúde da população negra. 

Tiveram muitos passos anteriores à elaboração dessa política e enquanto dirigente política dentro da SEPPIR, eu estive à frente de articular tanto dentro da Secretaria, quanto no diálogo com a sociedade civil organizada, com lideranças da saúde, acadêmicas.

A gente fez o primeiro Seminário Nacional de Saúde da População Negra, em 2004, com base no que já tinha sido feito anteriormente na mesa de saúde da população negra, após a marcha de 95 [Marcha Zumbi dos Palmares]. Eu participei desse processo, inclusive, batalhando para que a gente já fosse, de forma institucionalizada, com a criação da SEPPIR, para dentro da Conferência Nacional de Saúde.

De que forma os movimentos de mulheres negras brasileiras têm atuado na luta pela garantia do direito à saúde pública para a população negra?

MI: Temos uma articulação de mulheres negras pautando esse tema, não deixando essa peteca cair, porque isso significa as nossas vidas. Esse tema sempre esteve presente na organização de mulheres negras no Brasil, e continua sendo. Nós conquistamos, por exemplo, representações de mulheres negras inseridas no movimento do Conselho Nacional de Saúde. Mas ainda existem muitos desafios.

E quais são esses desafios?

MI: Existem limites e possibilidades nesse tipo de espaço político, econômico, social. Essas representações – e eu tô me dedicando a me debruçar sobre nós, mulheres negras, mas isso ocorre também com os outros movimentos – vão para os espaços mas muitas vezes acabam não representando, porque o vínculo com quem você representa acaba sendo muito diluído. 

As organizações da sociedade civil representam 50% dos assentos do conselho, os trabalhadores e trabalhadoras de saúde, 25%, e a gestão, 25%. Ao olharmos por esse ângulo nós seríamos maioria, mas o que ocorre aí é que a gente não consegue efetivamente garantir, mesmo sendo 75% destes assentos, a efetividade do sistema. Porque as coisas não são tão simples assim. Então, para mim, o desafio no momento é que nós deveríamos utilizar mais da comunicação e tecnologia para dialogar com quem está lá representando e vice-versa e para divulgar os diversos temas que estão sendo lá discutidos.

Essa área da comunicação, essas redes amplas que nós temos, do povo negro, como estão se vinculando a isso? Qual o papel da comunicação e das redes nesse sentido? Como eu divulgo e fomento isso? Como que eu traduzo isso para as pessoas mais diretamente? Nós vamos ter uma conferência no ano que vem, a 17ª Conferência Nacional de Saúde, e como isso está sendo colocado? O que as pessoas estão sabendo disso? Como podemos nos prepararmos para ser delegades, delegados e delegadas e fazer a disputa política? Esses são desafios concretos. 

Especialmente durante a pandemia, a gente tem vivenciado esse governo negacionista e omisso em relação à saúde da população. Para você, quais foram os efeitos diretos desse posicionamento negacionista, especificamente sobre a população negra, como essa política negacionista afetou a população negra?

MI: Primeiro, afeta porque somos a maioria da população e somos a maioria da população pobre. Então, com esse desgoverno, com essa forma de não respeitar, de não garantir, de desprezar a população, nós seríamos e fomos os mais afetados e afetadas. 

A maioria dos que faleceram eram do serviço de enfermagem, que em sua grande maioria são mulheres negras, são elas que estão na linha de frente. O impacto disso são essas 700.000 mortes, o atraso na vacinação, essa negação da necessidade da vacina. 

Os resultados estão aí,  mas nós nem conseguimos mensurar ainda o impacto posterior. Para quem não faleceu, quais são os impactos? Ainda se desconhece, está se estudando isso. Se sabe que tem um impacto nas pessoas que tiveram COVID e não faleceram. Isso está em estudo.

São milhões e milhões de pessoas que não têm o que comer, não estão empregadas. E como já falei, tudo isso tem um impacto na saúde: boa alimentação, ter tranquilidade, ter onde morar, não andar em ônibus cheio, não ficar com medo da chuva porque a casa pode cair na cabeça…

Estamos voltando doenças porque as pessoas não estão se vacinando, devido à necropolítica.  Tem a ver com política, tem a ver com as escolhas que são feitas, com a forma como essa gestão é feita e com a compreensão sobre quem vale e quem não vale.

27 de outubro também é o Dia Nacional de Luta pelos Direitos das pessoas com Doença Falciforme. Segundo informações do Ministério da Saúde, essa condição atinge cerca de 8% da população negra. Como o sistema de saúde tem lidado com essa especificidade?

É uma luta histórica de anos e anos, até se ter uma política para as pessoas com Doença Falciforme, mas ainda precisa avançar no processo de formação dos profissionais. Eu fui professora na faculdade de medicina da Universidade Federal de Mato Grosso e essa realidade não mudou muito, pelo que eu sei. São pouquíssimas aulas que se tem sobre esse tema no curso de medicina, ainda hoje. 

Doença Falciforme é uma expressão nítida do racismo, quando essa patologia foi negligenciada, e ela foi negligenciada porque estava associada aos corpos negros, às pessoas negras. É a doença genética mais importante do país e durante décadas não teve atenção, só veio a ter devido à pressão.

Avançamos muito porque tem uma política, mas isso se deu porque foi uma resposta aos movimentos de pais e mães que se dedicaram a isso. Existem pais e mães que conhecem mais sobre a Doença Falciforme do que muitos profissionais da saúde, porque foram estudaram, se debruçaram, forjaram isso enquanto tema de saúde pública. Muito foi feito devido ao movimento e muito há para ser feito.

Quais são os próximos passos para incidir sobre as políticas de saúde da população negra brasileira?

MI: Essa mudança também passa por nós mesmos. Nós vamos ter a 17ª Conferência Nacional de Saúde com o tema “Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia”, que será realizada de 2 a 5 de julho de 2023. Nós vamos ter as etapas municipais e estaduais entre novembro deste ano e março de 2023 e as etapas estaduais serão de abril a maio de 2023. A gente precisa acompanhar esse processo. Precisamos estimular e divulgar isto é contribuir para que nós estejamos dentro desses espaços que são espaços políticos e de decisões políticas. 

Quando a gente fala de aquilombar-se é isso. Como eu vou me aquilombar buscando saber na unidade básica de saúde, onde eu moro, onde eu vivo, onde minha vida pulsa, se tem conselho naquela unidade de saúde? Porque, se não, conquistamos um direito que a gente não vivencia. A conferência é uma oportunidade como nunca. E nós precisamos, enquanto movimentos organizados de homens e mulheres negras, estar lá pra disputar esses espaços.

Nós estamos falando da saúde da população negra e nós estamos falando do Sistema Único de Saúde. Nós estamos chamando a atenção do que precisa colocar em foco na população negra, porque o sistema não está funcionando na sua plenitude. Se o acesso fosse universal, gratuito e garantido a todo e qualquer um de nós, nós não precisaríamos estar conversando sobre isso.

A gente precisa desempenhar um papel de demandar espaço, e quando eu estou falando dos espaços do poder, não é se ter “pele negra e máscaras brancas”. Não basta ter a pele negra, precisa estar vinculado a um projeto coletivo. Então, vamos à luta, porque a luta já está dada!

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