#OpiniãoOdara – Das retrospectivas de 2024 ao esperançar de 2025: Seguimos em Marcha por Reparação e Bem Viver!
Nós, do Odara – Instituto da Mulher Negra, enquanto Movimento de Mulheres Negras Brasileiras, alinhadas ao movimento transnacional de mulheres negras, estamos em marcha continuamente, não apenas na busca por garantia de direitos, mas para reafirmar a nossa centralidade política e histórica no compromisso com a construção de um projeto de nação que inclua todo o povo brasileiro, na sua concepção, execução e acessos. Ousadamente, seguimos manifestando que o Brasil precisa urgentemente superar as desigualdades históricas motivadas pelo racismo, desigualdades e injustiças de gênero, sexualidades, territoriais e ambientais.
2024 foi um ano de muitos desafios, mas também de reafirmação da nossa força coletiva e da importância da nossa luta enquanto uma organização de mulheres negras do Nordeste, deste país. Em um cenário político marcado por instabilidades e retrocessos em diversas áreas, inclusive dentro dos resultados das eleições, onde estimamos mais de um século para ocupação representativa de mulheres negras na prefeitura dos municípios da nossa região, fomos novamente provocadas a intensificar nossas ações para resistir e avançar.
A violência política de raça e gênero seguiu um ciclo perverso que ainda nos esforçamos diariamente para romper. A cada dia, vimos o crescimento da força destrutiva dos setores políticos conservadores, que atacam de forma impiedosa os direitos da população negra, os direitos das mulheres negras e de todas as populações historicamente marginalizadas; mas também denunciamos o pacto da branquitude na esquerda brasileira, que sobretudo na região Nordeste, nas últimas décadas, opera o genocídio da população negra, a se destacar em gestões estaduais da segurança pública, acesso à saúde e direitos quilombolas.
Este ano também ficou marcado por tragédias que escancaram o impacto do racismo e da negligência nas políticas públicas de saúde, especialmente no que diz respeito à saúde reprodutiva das mulheres negras. Em Salvador, por exemplo, em menos de um mês, três casos de violência obstétrica envolvendo mulheres negras ganharam os noticiários, revelando a crueldade de um sistema que insiste em tratar vidas negras como descartáveis.
É inadmissível que, em um estado como a Bahia, onde a população negra é majoritária, ainda faltem políticas públicas eficazes para combater o racismo obstétrico e reduzir a mortalidade materna. A ausência de mulheres negras em cargos de decisão tem um impacto direto na perpetuação dessas violências estruturais. Não podemos deixar de mencionar que, em 2024, o Brasil testemunhou um ataque cruel e orquestrado aos direitos das mulheres, especialmente das mulheres negras, com a tramitação da PEC que busca proibir o aborto em qualquer circunstância e comparar o aborto ao crime de homicídio com pena de prisão.
Essa proposta, sustentada por uma visão moralista, patriarcal e racista, desconsidera a realidade enfrentada por milhares de meninas e mulheres negras, que já sofrem desproporcionalmente com a falta de acesso à saúde, à informação e à assistência adequada e para as quais o aborto chega como resultado de um ciclo de violações. Tem-se assim, uma tentativa de aprofundar desigualdades históricas e perpetuar a exclusão de um grupo que já é sistematicamente marginalizado.
E falando em notícias, neste ano fomos atravessadas, quase que diariamente, por manchetes de casos de feminicídios. Nos primeiros cinco meses de 2024, foram registrados 380 mil casos de violência contra mulher na Justiça brasileira, fora os casos subnotificados, que permaneceram invisíveis nas estatísticas, mas não menos dolorosos para as famílias. Dentre estas, está Elitânia de Souza, jovem liderança quilombola de 25 anos, que foi assassinada quando saía da universidade em Cachoeira (BA). O julgamento de seu assassino, que finalmente ocorreu em 2024, fruto da insistência de sua família e da parceria de incidência política feita entre nós e nossas companheiras da ONG TamoJuntas. O resultado do júri popular condenou o réu com três qualificadoras, mas também reafirmou a negligência e morosidade do sistema de justiça em crimes contra as nossas vidas. E a partir deste caso, nos debruçamos a refletir sobre a justiça que queremos em casos de feminicídio. Não basta a criminalização do réu. E a responsabilização do Estado? Sobretudo nas situações de mulheres mortas sob medidas protetivas violadas?
Neste ano, o Estado Brasileiro também renovou sua estratégia de não se responsabilizar pelo futuro da juventude negra. No mesmo ano onde foi lançado o Plano de Juventude Negra Viva, que não consegue garantir a vida de crianças, adolescentes e jovens negros, vimos que a juventude negra segue sendo principal alvo das Polícias.
A verdade é que esse Estado não consegue garantir a vida das nossas crianças, assim como não garantiu a vida do “Menino Joel”, criança negra de apenas 10 anos, morto por um disparo de arma de fogo durante ação policial no Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA), em novembro de 2010, e que só neste ano, 13 anos após, teve seu caso julgado – também a partir da nossa incidência e atuação como assistentes de acusação do Ministério Público da Bahia, através do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar. Apesar da condenação do atirador, o restante da cadeia de comando da operação não foi responsabilizada, e seguimos nos perguntando até quando enterraremos nossas crianças? Até quando seguirão tirando de nós a nossa possibilidade de esperançar?
Para denunciar internacionalmente a violência policial na Bahia, a partir também do Minha Mãe Não Dorme, produzimos o documento “Quem vai contar os corpos?”: Dossiê sobre as mortes de crianças negras como consequência da atuação da Polícia Militar da Bahia, que apresenta histórias reais e dados sobre mortes de crianças e adolescentes em consequência de operações policiais na Bahia durante os últimos 13 anos.
Mesmo com um cenário desafiador, onde 81% do ano letivo foi impactado por tiroteios que aconteceram ao redor das escolas, em Salvador, nadamos contra a maré, e seguimos exigindo que a educação pública e de qualidade seja um direito garantido para nossas crianças. Debatemos incansavelmente o texto do Plano Nacional de Educação (2024 – 2034), em encontros virtuais, com as companheiras do Nordeste e da Amazônia. Também fomos até Brasília (DF) para participar da Conferência Nacional de Educação (Conae) [ainda que, sem convite e vetadas dos espaços], já que entendemos que não há como construir um PNE, neste país, onde raça e gênero não estejam na pauta principal do dia.
Lançamos também a campanha Levantes Negros pela Educação, em parceria com as companheiras do Centro de Estudos em Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), uma campanha que destaca as conquistas e dialoga sobre os desafios dos movimentos negros e de mulheres negras na luta por uma educação pública, gratuita e de qualidade.
NOSSA JUVENTUDE É NOSSO ESPERANÇAR
Durante o ano, as juventudes dos projetos Minha Mãe Não Dorme Enquanto eu Não Chegar, do Ayomide Odara e do Núcleo de Juventudes Negras Odara, nos mostraram o quanto é importante “acreditar na rapaziada”. Foi com elas e eles que aprendemos que a resistência é um compromisso com o presente e o futuro. É ouvindo a voz dessas meninas, adolescentes e jovens que seguimos debatendo a cidade e país que queremos. São eles e elas nosso farol de esperança e de alegria, enquanto encaramos a dura realidade das capitais nordestinas matarem cerca de 70% mais jovens do que a cidade do Rio de Janeiro – onde a violência policial alcança visibilidade nacional. A despeito de tudo isso, nossos jovens seguem trocando estratégias e discutindo estratégias de construção de Bem Viver.
SEGUIMOS EM MARCHA
Não podemos olhar para os desafios sem reconhecer as vitórias. A força da nossa mobilização reafirma o poder da continuidade que emana da nossa luta, e se expressa na capilaridade nacional e regional de agendas de incidência política dos Movimentos de Mulheres Negras que ganharam adesão nos mais diversos setores da sociedade, a exemplo do Março de Lutas, o Julho das Pretas, a Jornada Pela Vida das Mulheres Negras e a Semana Elitânia de Souza.
Nesse sentido, com autonomia, generosidade e radicalidade, articulamos ao longo de todo o ano a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver – que acontecerá no dia 25 de novembro de 2025, em Brasília, com mulheres negras de todo o mundo. A Marcha nos ensina que nossa caminhada é pela transformação radical em um Brasil que ainda precisa reconhecer as injustiças raciais que geraram a sua construção; e a partir disso, reestruturar o imaginário social sobre nós, nos garantindo sonhos possíveis e oportunidades de futuro.
Na última década, com a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, as Violências e pelo Bem Viver, a presença política das mulheres negras no Brasil se consolidou como uma força motriz para a vocalização das demandas das maiorias historicamente excluídas. Somos nós, que em Marcha, protagonizamos a transformação e exposição das desigualdades estruturais do país. A reparação, que tem como base a valorização da história, cultura e identidade negra, é um pilar de nossa luta. O reconhecimento de opressões coloniais e a promoção da igualdade de oportunidades sem as barreiras impostas pelo racismo patriarcal são os caminhos para a superação das violências que atravessam as nossas vidas.
2025 será um ano de desafios e também de propósitos concretos de radicalidade e organização coletiva. É oportunidade de reafirmar o nosso compromisso com um Brasil em que reparação seja palavra de ordem para imaginar uma justiça histórica, um país onde o Bem Viver não seja apenas um ideal distante, mas uma realidade concreta para todas as pessoas. Nesse sentido, a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver vem fortalecer nossas agendas enquanto sujeitas políticas fundamentais no cenário nacional.
Depois de um ano desses, agradecemos pelas redes que nos fazem seguir firmes, por toda a presença e dedicação das nossas parceiras, mais novas e mais velhas. A todas as que, com coragem, fé, sonho, e determinação, caminham ao nosso lado e em aliança somam na luta do combate ao racismo, encarando suas estruturas de ação, do pensamento e teoria até a prática.
Agradecemos a todas as pessoas que acreditam em nossa incidência política, que estimulam e mobilizam transformações na vida das meninas, juventudes e mulheres negras, suas famílias e comunidades. O apoio de todas essas forças nos impulsiona a seguir em frente e nos dá régua, compasso e chão de realidade para seguir num caminho sustentado pela escuta e ação coletiva com responsabilidade e respeito às diferenças.
Agradecemos a força da nossa ancestralidade por ter nos conduzido para esta luta. Adupé Orixá, que não nos abandona. Adupé Odara, por ser tão vivo e sagaz e nos guiar nas batalhas!
Estamos certas que construimos um futuro melhor para toda sociedade. Cada passo que damos é um avanço para alcançar um Brasil que, finalmente, reconhece o valor das mulheres negras e o direito de todas as pessoas ao Bem Viver. Seguimos em Marcha, reafirmando nosso compromisso com a reparação histórica e com um país livre de racismo, sexismo, LGBTQIAP+fobia e todas as formas de discriminação. Nossa luta é por direito à vida, reconhecimento da nossa história, transformação dos nossos presentes, sonhos e futuros possíveis! Rumo a Marcha Global de Mulheres Negras, 1 milhão de vozes!
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