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OpiniãoOdara – De Marielle a Mãe Bernadete, a luta por moradia e terra ameaça a vida das mulheres negras todo dia

A prisão do Clã Brazão e do Rivaldo asqueroso é a ponta do iceberg do modus operandi da aliança entre política e o sub-mundo do crime no Brasil

Os recentes desdobramentos no caso do assassinato da ativista e vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, lançam luz sobre uma teia complexa de relações entre as polícias, a política, as milícias e os interesses financeiros dos poderosos – para nós, nada novo sob o sol. E mesmo com nossa desesperança no sistema de justiça amparada na história e cultura destas instituições, ainda deu gosto de ver os crápulas algemados, conduzidos pela Polícia Federal. 

Ronie Lessa, ex-policial militar acusado dos disparos contra a vereadora e seu motorista, delatou o deputado federal fluminense Chiquinho Brazão, do União Brasil, e seu irmão Domingos Brazão, Conselheiro do Tribunal de Contas do estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), como mandantes do crime. Este último, inclusive, já havia sido delatado por Élcio Queiroz, que assim como Lessa, é ex-policial militar, miliciano, preso pela morte de Marielle e Anderson.

Ainda segundo Lessa, o crime foi “meticulosamente planejado” pelo delegado Rivaldo Barbosa, que assumiu o comando da Polícia Civil do estado um dia antes do assassinato de Marielle Franco, como parte do plano. Rivaldo, de maneira ardilosa, foi a pessoa que garantiu pessoalmente às famílias de Marielle e Anderson que o caso seria solucionado por “uma questão de honra”. Ele é suspeito não apenas de participar ativamente do plano, mas também de obstruir as investigações sobre o assassinato.

Essa conexão direta entre a polícia e um dos crimes políticos que mais chocaram o país na história da suposta democracia brasileira é alarmante e revela uma teia de corrupção e violência que permeia as estruturas de poder em nosso país. A delação de Lessa não apenas confirma suspeitas prévias, mas também evidencia a profundidade das relações que operam nos bastidores do poder.

A família Brazão, mencionada na delação de Lessa, adiciona mais uma camada de complexidade a essa história. Essas revelações expõem a corrupção das instituições que deveriam proteger os cidadãos e aplicar a lei. É um lembrete de que o crime e a impunidade estão sendo naturalmente praticados e abafados pela elite política branca e masculina brasileira como modus operandi comum deste sistema, que insiste que “bandido bom é bandido morto”, mas apenas para os delitos cometidos por pessoas negras.

Marielle Franco foi assassinada por sua luta por moradia digna para as pessoas pobres e negras, um direito básico que nos é negado. Sua defesa pela habitação representa um dos principais gargalos da luta racial e de classes no Brasil: moradia, terra e território. Essa luta também reflete a batalha de Bernadete Pacífico, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares (BA), que também foi vítima fatal enquanto defendia a permanência de sua comunidade contra a exploração e o deslocamento forçado do seu território. Ambas pagaram com a vida por enfrentarem os poderes da especulação imobiliária, do latifúndio, do crime organizado, tendo o Estado como cúmplice e ausente na proteção das mulheres negras defensoras de direitos humanos. 

A violência brutal que tirou as vidas da vereadora Marielle Franco e da líder quilombola Bernadete Pacífico demonstra o abandono e a negligência enfrentados por aqueles que ousam desafiar as estruturas de poder de homens brancos ricos, que se consideram acima de qualquer lei, que entendem as vidas de mulheres negras como descartáveis e por isso, que quando se sentem incomodados, nos atacam com a certeza da impunidade.

Marielle e Mãe Bernadete representam a sanha por justiça de todas nós que entendemos que lutar é a única opção. A análise da violência política revela como ela atinge de forma desproporcional as mulheres negras, tanto no campo quanto na cidade. Ativistas negras em defesa de suas comunidades são alvos cotidianos de ameaças, intimidação e, em alguns casos, de assassinatos.

Não deixamos de celebrar a prisão dos irmãos Brazão e de Rivaldo, o delegado asqueroso, mas isso está longe de representar uma “vitória para o Estado brasileiro”, como destacou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Da mesma forma, Marielle não venceu, como afirmou Marcelo Freixo, em entrevista ao programa Sem Censura no último dia 25. Marielle habitar nos sonhos de meninas e mulheres negras como referência de luta e trajetória política, não reduz a perversidade de sua morte precoce provocada justamente pelas causas pelas quais ela lutava.

Sabemos que Marielle certamente não foi a única vítima do clã Brazão, sabemos que das polícias nascem as milícias aliadas dos políticos corruptos de todo país, sabemos que nós, pessoas negras, somos os alvos preferenciais dessa violência, e mudar esse quadro seria a verdadeira vitória para o Estado brasileiro, se este fosse composto por instituições realmente comprometidas com a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Enquanto celebramos os avanços nas investigações deste caso tão emblemático, também devemos nos questionar sobre as medidas necessárias para garantir que crimes como o que vitimou Marielle e Anderson não se repitam. Isso requer não apenas a identificação e punição dos responsáveis, mas também a implementação de políticas eficazes que protejam os direitos e a segurança daqueles que estão na frente das lutas, a começar pelas líderes comunitárias, quilombolas, indígenas – pessoas que carregam a luta por uma nação possível em seus corpos e territórios.

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