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#OpiniãoOdara: Gleiciene Jesus dos Santos, mais uma jovem quilombola é vítima do feminicídio e da negligência do Estado, na Bahia

Por Joyce Souza

Feminicídio é a segunda maior causa de assassinato de quilombolas; as políticas de proteção à vida das mulheres são ineficientes nas comunidades tradicionais

Na última terça-feira (12), mais uma jovem quilombola foi assassinada na Bahia. O corpo de Gleiciene Jesus dos Santos, de 19 anos, foi encontrado abandonado com sinais de estrangulamento numa área de matagal nas proximidades de sua comunidade, o Quilombo de Coqueiro, no município de Mirangaba. O principal suspeito era o então companheiro da vítima: Douglas dos Santos, de 20 anos, que está foragido e já a agrediu anteriormente, conforme relato de testemunhas locais. Ambos da mesma comunidade, o casal convivia há cinco anos na mesma moradia.

Gleiciane era trancista e conhecida por sua participação ativa na Associação Quilombola de Coqueiros, onde contribuiu para ações e projetos de reconhecimento da cultura e identidade de jovens e meninas quilombolas, em especial através de práticas de fortalecimento da autoestima e valorização da estética negra. 

Conforme a segunda edição do relatório “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”, realizado a partir da parceria entre a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e a Terra de Direitos, o feminicídio foi a segunda maior causa de assassinatos contra quilombolas entre 2018 e 2022, totalizando 31,25% dos casos, logo abaixo das mortes por conflitos fundiários (40,62%). O Nordeste é a região com maior número de feminicídio de quilombolas.

Entre o período de análise da pesquisa, destaca-se o ano de 2019, em que cinco das oito vítimas (de homicídios) registradas sofreram feminicídio, entre elas Elitânia de Souza, jovem liderança quilombola de 25 anos, brutalmente assassinada no dia 27 de novembro. O ex namorado, Alexandre Passos Silva Góes, a abordou quando saía da aula do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no município de Cachoeira – Ba, onde cursava o sétimo semestre da graduação.

O Estado falhou em promover proteção e prevenção da violência contra  Elitânia de Souza e Gleiciane dos Santos, como tem falhado com cada mulher, mas sobretudo com cada mulher negra, quilombola, cada mulher residente em comunidades rurais, ribeirinhas e ilhadas, cada mulher do interior da Bahia. São inexistentes medidas de prevenção à violência doméstica e familiar específicas que dêem conta da territorialidade que não seja urbana, além de serem inoperantes os mecanismos de denúncia e enfrentamento em um dos estados mais rurais do país, com uma taxa de 27,93% da população com residência na área rural (IBGE, 2010). 

A partir da incidência política pelo fim da violência contra as mulheres em territórios quilombolas, através do Projeto Quilomba – Pela Vida Das Mulheres Negras, nós, do Instituto Odara, temos feito côro à defesa de políticas específicas para promoção da segurança de mulheres quilombolas. Entre as agendas do ano de 2023, nos articulamos com cerca de 30 comunidades quilombolas dos territórios do Recôncavo, Baixo Sul, Chapada Diamantina e Oeste da Bahia, em que a realidade das narrativas é a mesma: não existem políticas públicas de prevenção ou enfrentamento à violência doméstica, familiar e o feminicídio que alcancem a realidade das mulheres quilombolas no estado. 

O medo é um fator impeditivo para denúncia de violência doméstica e familiar por parte das quilombolas, sobretudo o medo das forças policiais. Mas a inoperância da Lei Maria da Penha é especialmente relevante para a subnotificação de casos nas zonas rurais. Não temos como reproduzir campanha de Disque Denúncia nestes territórios, quando temos ciência que nenhum aparelho chegará a tempo de impedir um feminicídio. Também é desconfortável indicar que uma mulher quilombola ou ribeirinha se dirija à uma delegacia comum para registrar boletim de ocorrência, seja pela provável violência institucional comumente denunciada como revitimização; seja pelo fato da medida protetiva ser o único instrumento imediato de proteção à vítima, que tem o distanciamento como prerrogativa, praticamente inviável de ser cumprido quando vítima e agressor convivem em uma rede de relações comunitárias.

Entre os territórios tradicionais existe o contexto de sociabilidade da família extensa, com vínculos afetivos, comunitários e de parentesco entre o casal, que estão para além da relação conjugal. Esta é a situação da Comunidade Quilombola de Coqueiros, com cerca de 300 famílias, que se encontram em choque, devastada pelo sentimento de dor e revolta por perderem uma jovem de 19 anos de forma tão violenta, mas também pelo fato do suposto assassino fazer parte dessa comunidade, que é uma família extensa e os acompanharam desde as suas gerações passadas.

O Coletivo de Mulheres da CONAQ aponta que o racismo e as violências de gênero sofridos pelas quilombolas têm sido acobertados ainda pela ideia de tradição. Segundo as mesmas, “em muitos casos, a ideia de uma tradição imutável acoberta costumes socialmente construídos que legitimam violências psicológicas, morais, patrimoniais, físicas e sexuais dirigidas às mulheres”. Entre as teses apresentadas, reiteram a íntima relação entre violência doméstica e familiar e a violência institucional contra os quilombos, na medida em que quanto mais uma comunidade sofre pela ausência de políticas públicas e pressão de terceiros, maior o aprofundamento das violências de gênero. Portanto, reivindicam: “Que o Estado elabore, após consulta livre, prévia e informada, políticas específicas para coibir violências contra as mulheres quilombolas, dentro e fora dos territórios”.

Segundo a “Carta das Águas” (2023), publicada pela Rede Elas Negras Conexões – movimento de mulheres negras quilombolas da comunidade Santiago do Iguape, em Cachoeira-BA, há historicamente uma prática de desassistência às quilombolas, de modo que não chegam equipamentos ou ações de políticas para mulheres nos territórios. Bem como, os poucos mecanismos que ainda prestam algum serviço não agenciam nenhuma medida de prevenção ou enfrentamento às violências racistas e patriarcais, como escolas, unidades de saúde e centros de assistência social.

Em março de 2023, participamos da construção do Ato de Entrega da Carta das Águas na Câmara de Vereadores de Cachoeira (BA), em apoio ao pedido de criação da Secretaria de Políticas Para Mulheres, com especial atenção para o desenvolvimento de medidas para as quilombolas. Em agosto do mesmo ano, estivemos na Audiência Pública sobre a Casa da Mulher Brasileira, articulado pela Procuradoria Parlamentar da Mulher na Câmara Municipal de Salvador (CMS), quando mais uma vez não tivemos respostas satisfatórias ao questionarmos sobre medidas específicas para mulheres que residem em territórios de difícil acesso e com mobilidade reduzida na região metropolitana de Salvador, como os quilombos localizados na Ilha de Maré.

Na quarta edição da Semana Elitânia de Souza, em novembro de 2023, realizamos junto a outras organizações de mulheres negras e lideranças quilombolas da região, a Audiência Pública “A omissão do Estado no combate à violência doméstica e ao feminicídio na Bahia”, em Cachoeira (BA), onde cobramos mais uma vez dos poderes públicos, entre outra medidas, a formulação e implementação imediata de políticas específicas para atendimento de mulheres quilombolas, ribeirinhas, ilhadas, de fundo e fecho de pasto e com residência em comunidades  rurais; a reparação indenizatória para os familiares de vítimas de feminicídio e para vítimas de violência doméstica e familiar, especialmente aquelas em condição de medida protetiva.

Se, por um lado, a ideia de tradição e os laços comunitários e familiares dificultam o enfrentamento às violências de gênero nos territórios quilombolas, por outro, é a responsabilidade comunitária liderada por mulheres que tem promovido a proteção às vítimas como contenção para os processos de escalada da violência. Entre nossas campanhas de comunicação temos reproduzido o que aprendemos com nossas irmãs quilombolas: “a violência contra mulher destrói toda a comunidade”.

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