Coluna Beatriz Nascimento #10 Taiana Lemos
Desde agosto, temos visto por aqui, a escrita insubmissa de mulheres negras na Coluna Beatriz Nascimento: uma exposição dos produtos das mulheres participantes da 3ª Turma da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento. Hoje, chegamos ao décimo produto desta coluna: um audioconto inédito chamado “Salada de frutas”, escrito e interpretado pela atriz Taiana Lemos.
A seguir, leia e ouça o audioconto completo.
Salada de frutas.
Conto de Taiana Lemos
Olhava para as frutas com desejo de devorá-las. Todas as uvas de uma só vez. Depois as maçãs. A melancia inteira. A fome dos olhos nas frutas era tanta, que as cenas de um filme “salada de frutas” girava em sua cabeça. Queria engolir o mamão papaia, as laranjas e o abacaxi que poderia descer goela abaixo, com coroa e tudo! E de repente o filme pausa. As cenas perdem a cor e o peso das sacolas do supermercado era quase o mesmo daquele corpo franzino da menina que não era de falar muito. Precisava ser ágil e aguentar o máximo de sacolas possível até chegar ao carro do cliente da vez. Quanto mais rápida, maior a chance de receber bons trocados.
A cada partida de um veículo que acabara de carregar com compras, a menina mergulhava em sua imaginação cinematográfica. Poderia ficar ali o dia inteiro se não houvesse mais compras para empacotar e carregar até o estacionamento. E as frutas eram o seu tema favorito. É que ao imaginar o gosto daquelas maravilhas tão coloridas, a menina se deixava levar. Mas não era tão bom, porque muitas vezes ela perdia a vez de ganhar as moedas, pois logo os meninos que dividiam o “ponto” se mostravam em prontidão. E eles eram mais rápidos, geralmente. Ainda mais nos dias em que a menina sentia o pé da barriga queimar e desaguar uma vermelhidão entre as suas pernas. Nesses dias os passos eram lentos.
As pernas travavam para não escapulir nada dos pedaços de pano dobrados em três camadas. Ela pensava, com chateação, que não era justo competir assim. Mas não havia juízes, nem nada. Era jogo livre. Salve-se quem puder. E sobre isso ela nem duvidava, estava sempre atenta para se salvar.
Numa manhã chuvosa, em meio a um dos seus pensamentos-filmes onde saboreava uma torta gigante de morangos que girava na vitrine da parte reservada para lanches rápidos, a menina sentiu um gosto amargo na boca. Não parecia morango, nem torta. Sentiu-se esmagada, ora mastigando uma massa estranha que a sufocava, ora sendo a massa que a mastigava. Não era real, pensava ela.
O filme acelerava e ela não conseguia pausar. Sentiu medo de não conseguir mais voltar e garantir as moedas. Não podia ser vencida por aquela coisa gigante que a dominava. Sentia o centro do corpo rasgar como se estivesse engolido o abacaxi com coroa e tudo do outro dia. Era como a vala aberta que sugava a enxurrada que se formou naquela manhã. No momento do despertar dos olhos duros e vagos, a menina não teve certeza do que havia acontecido. Inclinou o tronco, reconheceu o seu entorno. Estava sozinha como de costume. Decidiu mudar o roteiro. Queria mais do que comer nas cenas da sua imaginação.
Sobre o conto salada de frutas
O conto Salada de Frutas é uma narrativa poética baseada no desejo de reorganização político-social. Aborda “sobre-vivências” em meio ao arranjo civilizatório baseado nas diferenças de raça, classe e gênero. É uma escrita libertária, um ato de protesto sobre voltar à vida e reclamar o direito de realizar sonhos. Compreendo que, ao colocar no centro a força solitária de uma menina sobrevivente, essa estratégia estética impulsiona o reposicionamento subjetivo de meninas e mulheres negras no debate estético e político.
Quem é Taiana Lemos?
Taiana Lemos, de Salvador,Bahia. É atriz e Professora de Teatro. Trabalho na Rede Municipal de Educação de Salvador. Integra o Coletivo da Liliths, plataforma artística formada por pessoas LGBTQIA+ com atuação nas artes da cena e na pesquisa sobre dissidências de gênero e sexualidade.
Ela colabora com o Coletivo de Professoras da Rede Municipal de Salvador, um agrupamento formado por trabalhadoras que lutam pela educação básica pública.
É mestra e atualmente está em processo de doutoramento em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia.
Taiana escreve pensando em transformar as escritas em cenas e tem a intenção de fazer das suas histórias e poesias, atos de luta por justiça social.