Coluna Beatriz Nascimento #7 – 2ª Temporada: Tânia Leal
Durante os meses de maio a julho, veremos por aqui, a 2ª edição da Coluna Beatriz Nascimento: uma exposição de produtos e pensamentos das mulheres participantes da 4ª Turma da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento. E o sétimo produto desta temporada, é uma carta escrita pelas mãos da Tânia Leal, para sua criança – e demais crianças negras.
A seguir, leia a carta na íntegra.
Macapá-AP, 30 de novembro de 2022.
Pretinha,
Sempre penso muito na frase “a criança que eu fui estaria orgulhosa da mulher que sou hoje”. Será? Tens como me responder se te causa orgulho saber quem sou? Talvez eu nunca tenha essa resposta. Para te ser bem sincera, nem eu mesma sei se me orgulho de quem sou – o que me permeia em relação a isso são mais perguntas do que respostas. Hoje nós somos professoras de formação, artistas independentes, cantoras, compositoras, ativistas e artesãs – esse último mais nas horas vagas, quando elas existem. No caminho, ainda há vontade de ser pesquisadora do discurso, já que sempre prestamos muita atenção ao que todo mundo falava sempre, só para poder falar bastante de volta. A gente sempre gostou de se comunicar. Talvez por ouvir tudo tão atentamente, sabíamos do que nos marcava a cara (a voz, o corpo, a vida toda): ser preta. Vir de uma família miscigenada, onde a maioria das pessoas eram brancas e faziam questão de nos lembrar o que somos também nos ajudou a perceber. Construímos nossa noção do “eu” em meio a tantas violências – silenciamentos, já que criança boa era mesmo criança calada; comentários sobre nosso corpo, nunca positivos; ser apresentada ao lado de uma prima branca “oi, essa é a Júlia, minha sobrinha liiinda, e essa, a Tânia”. Ponto. Eu era a Tânia. Pretinha, cabelo feio, nariz de batata igual ao do teu pai [aquele preto], como pode uma nêga não ter bunda? Mas eu só tenho nove anos, ter bunda é importante? As coisas ruins eu já tinha aprendido o suficiente, às vezes nem precisavam ser ditas. Aprendemos, nesse caminho, a nos comunicar com o silêncio também, a compreender os não ditos da branquitude. E sempre, sempre, a saber muito bem o nosso lugar. Afinal, as violências não ficavam só dentro de casa: a escola também era ambiente de lembrete de como éramos pretas, feias, boca de carvão, lábios roxinhos; a farmácia, o shopping, a loja de departamento quando o segurança ficava na minha cola. Você trabalha aqui? Como assim? Eu sou só uma criança, a gente pensava de novo, e de novo, e de novo…
Creio que por isso chegamos até aqui desse jeito: cheias de feridas, quase sem conseguir andar e com muita raiva no peito. Será que tu irias gostar de mim sabendo o quão raivosa eu sou? Pergunto-me constantemente se a branquitude teve sucesso ao me encaixar no estigma de angry black woman, ou, se eu só sou raivosa mesmo por conta de toda a dor. Acho que irias entender meus motivos. Afinal, os tenho de sobra. Apesar de eu compreender tudo o que baseiam essas violências que passamos, não fica mais fácil lidar com a branquitude depois de adulta. Ainda dói muito. Tu, criança, ainda estás viva dentro de mim e ainda se encolhe e chora quando somos lembradas de novo do lugar que devemos estar.
A diferença é que agora o negamos. Lá na escola, fomos ensinadas que o ser ancestral era fadado à condição absoluta de escravo. Escravo e escravizado são palavras bem diferentes.
Não nos contaram, como bem pontua Carla Akotirene, que o Oceano Atlântico foi palco de muitas mortes enquanto éramos sequestrados de nossos lares, torturados e encarcerados. A escravidão não nos era inata – era colonial. Além disso, nos ensinaram também que uma princesa nos deu carta de alforria. Mas pretinha, sinto te dizer que os navios negreiros viraram os camburões do BOPE, o tronco virou uma cela de prisão e a escravidão e a tortura ainda aparecem nas Comunidades Terapêuticas (e em tantos outros espaços). Apesar de alguém ter decretado independência do Brasil e documentado “liberdade” ao povo preto, a colonização encontra diariamente novos meios de nos manter na condição de escravizados. Como não sentir raiva?
A notícia boa daqui, é que aprendemos muita coisa até onde chegamos. Aprendemos que quilombos se constroem em lugares que nem imaginamos – inclusive numa sala online cheia de mulheres pretas com vivências diversas, de vários lugares do país, muito inteligentes, com muito a nos ensinar. Sim, inteligentes, pretinhas como nós. O aquilombamento é construído por meio da (tua) arte, do (teu) ativismo e da vontade de ser qualquer coisa que tu queiras, Taninha. Tu podes tudo. Toda vez que alguém te disser que não, vai ser por medo do quão grande tu podes ser. Mas de qualquer maneira, eu gostaria de te adiantar algumas coisas, para que essa raiva que te falei seja combustível antes de ser adoecimento. Já que gostas tanto de ler, procura sobre Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Angela Davis e bell hooks. Tenta prestar mais atenção nas letras de samba que a mamãe tanto gosta de ouvir – quem cede a vez não quer vitória/somos herança da memória. Sabotage, RZO e Racionais também têm muito a te dizer por meio do rap.
Como hoje consigo te olhar, compreender-te e amar-te – como tu, criança, nunca conseguiu, já que a gente sempre se olhou no espelho e se sentiu feia – te digo outra coisa necessária: algumas dores nunca passam, sabe, pretinha? Preciso ser realista. Mas o aquilombar-se é possível e te garanto que estar em espaços com outros pretinhos e pretinhas nos permite usar de tecnologias ancestrais que só quem tem a pele alva sabe. A gente sabe, do fundo da memória, que o Jorge Aragão te canta e tu ainda nem percebes. O conectar-se com outras meninas/mulheres pretas, ouvi-las, compreender o motivo de terem tanto em comum te faz mais forte. E toda a dor, toda a raiva pode ser usada para construir um mundo onde, quando chegares à minha idade, possas lutar por outras meninas pretinhas como tu, para que elas nunca passem pelo que a gente passou.
Com saudade, muito amor e muita vontade de poder te abraçar.
Tânia Leal.
Quem é Tânia Leal?
Artista independente, mulher cis bissexual preta da Amazônia. Professora de formação e pesquisadora de raça e discurso, é militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas no Amapá e compõe o Movimento de Luta Antimanicomial do Amapá.
Faço parte da diretoria do GUP Vida Umuarama casa de apoio a pessoas que vivem e convive com ISTs, HIV e AIDS, COMUNIDADE LGBTQIA+ MULHERES VITIMAS DE VIOLÊNCIAS E MULHERES NEGRAS.