#Opinião Odara – Dia das Mães: Maternidades Negras Interditadas – O silêncio das maternidades interrompidas: Quem tem o direito a maternar, em um país que mata mães e filhos negros?

Mulheres negras seguem sendo violentadas por um Estado que escolhe quem pode maternar e quem deve enterrar seus filhos
Neste Dia das Mães, para milhares de mulheres negras brasileiras, o silêncio das ausências fala mais alto. Silencia-se o riso das crianças e o consolo do colo. O que celebramos quando tantas mães negras têm suas maternidades interrompidas, violentadas, arrancadas? Neste país forjado na escravidão, o ventre negro sempre foi um território de disputa: ora explorado, ora criminalizado, nunca plenamente respeitado.
As violências contra as mães negras começam antes mesmo do parto. A violência obstétrica, marcada por negligência, humilhação, esterilizações forçadas e medicalização faltante ou excessiva, é uma realidade nas maternidades públicas, onde mulheres negras são maioria. O racismo desumaniza essas mulheres, transforma dor em estatística, e parto em sobrevivência.
Mas as violações não terminam aí. As mães negras vivem em um estado de alerta permanente. Não descansam enquanto o filho não chega em casa. Cada saída é uma roleta russa: “Levou o documento?”, “Está com roupa neutra?”, “Não fale alto!”, “Não corra!”, “Abaixe o capuz!”. Há uma obsessão ensinada e herdada para tentar manter os filhos vivos, mas a verdade cruel é que nenhum cuidado blinda um corpo negro da mira da polícia. Ser jovem e negro neste país é carregar um alvo nas costas.
O corpo negro, sobretudo jovem e masculino, é visto como ameaça mesmo quando está desarmado, mesmo quando está voltando da escola, mesmo quando dorme em casa. E ser mãe de um jovem negro é viver com o coração apertado entre orações e estratégias de sobrevivência.
E embora os meninos e homens negros sejam os mais vitimados pela violência do Estado, as meninas e mulheres também não estão imunes: como a menina Geovanna Nogueira, de apenas 11 anos, ou a idosa Maria de Jesus, de 87 anos. Ser mãe de meninas e jovens negras é também viver com medo que suas filhas seja vítimas de abuso sexual, de violência doméstica e feminicídio; porque são também as mulheres negras mais vitimadas nestes contextos.
E os casos estão aí, para quem quiser enxergar
Ana Luiza Silva dos Santos de Jesus, jovem negra de 19 anos, estudante universitária, moradora do bairro da Engomadeira, em Salvador (BA), foi baleada e morta próximo a sua casa, durante mais uma operação policial violenta e irresponsável. Sua mãe, Elisângela Silva, hoje carrega a dor de não poder mais abraçar a filha. Quem protegeu Ana Luiza? Onde está o Estado quando a vida negra é arrancada de forma covarde?
Tainara Santos, jovem quilombola, da comunidade Acutinga Motecho, em Cachoeira (BA), de 27 anos, mãe de duas meninas pequenas, foi assassinada por um ex-marido contra quem já havia uma medida protetiva. O Estado não garantiu a proteção mínima que poderia ter evitado o feminicídio. Suas filhas agora crescerão sem a mãe. O nome disso é negligência racista e patriarcal.
Maria de Jesus, de 87 anos, foi atingida por tiros enquanto almoçava dentro da própria casa, no bairro do Nordeste de Amaralina, também em Salvador. Os policiais alegaram que se tratava de mais uma operação policial, com troca de tiros. A vizinhança conta outra história. O Estado não respeita nem a velhice negra, nem a memória de quem tanto lutou para criar seus filhos.
Joseane Conceição Guimarães, também moradora do Nordeste de Amaralina, enterrou seus dois filhos no intervalo de um ano. Um foi assassinado pelo tráfico, o outro foi executado pela polícia. Em ambos os casos, o Estado falhou. Falhou ao não garantir políticas de proteção e cuidado, falhou ao permitir que jovens negros sejam aliciados por organizações criminosas e, depois, exterminados por operações que tratam territórios negros como zonas de guerra. Quando o tráfico mata, o Estado é cúmplice por omissão. Quando a polícia mata, o Estado é culpado por ação direta. Nas duas pontas, quem morre é o povo negro. E quem chora, de novo, são as mães. Quantas vezes o coração de uma mãe pode ser partido até não restar mais nada?
E mais recentemente, Kauã Araújo do Santos, adolescente negro de 15 anos, morreu após ser violentamente espancado por policiais militares no bairro do Uruguai, em Salvador. Kauã foi abordado e colocado à força numa viatura ao sair da escola com amigos. Horas depois, voltou para casa cheio de dores, pálido, dizendo que “apanhou muito”. Dias depois, perdeu a fala, entrou em estado de sofrimento agudo e morreu no hospital. Criado pela avó, que o tratava como filho, Kauã teve sua vida interrompida pela brutalidade de um Estado que vê na juventude negra um inimigo a ser eliminado. Sua avó, devastada, chora agora o neto único, mais uma mãe de alma dilacerada pelo terror policial.
Esses nomes e histórias ecoam a interdição das maternidades negras. Vidas que tentam florescer entre lutos, resistências e amor. Falar sobre isso é romper o pacto do silêncio que sustenta o genocídio negro. É afirmar que a maternidade negra precisa ser cuidada, protegida, reparada.
Essas mães são o retrato de um Brasil que oprime, abandona e assassina seus filhos negros e depois culpa as mães por não terem conseguido salvá-los. O que está em curso é um projeto de genocídio, travestido de política de segurança pública.
Que reparação queremos? Uma que passe pelo reconhecimento do racismo como estrutura de morte. Que garanta justiça nos tribunais e vida nas favelas. Que assegure segurança verdadeira e não vigilância para mães e filhos negros. Que fortaleçam redes de apoio, políticas públicas e espaços de escuta e afeto. Que celebre o Bem Viver como um direito das mulheres negras e de seus filhos.
Neste Dia das Mães, não pedimos flores. Exigimos que o direito de maternar com dignidade seja garantido às mulheres negras deste país. Exigimos reparação por todas as vidas perdidas e pelas que resistem. Queremos políticas públicas que protejam, e não que matem. Queremos segurança real, não ocupação militar. Queremos o fim da polícia que invade casas e atira sem perguntar. Queremos o direito de criar nossos filhos em paz.
Que cada nome lembrado aqui ecoe como denúncia. Que nossas vozes sigam sendo sementes de luta. Neste Dia das Mães, estendemos nossas flores às que estão de luto e às que lutam para criar seus filhos com dignidade. Que o futuro nos encontre com mais justiça, menos ausências, e todas vivas.
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