Seis meses sem Tainara dos Santos: Ato em Cachoeira (BA) exige justiça e denuncia omissão do Estado em mais um caso de feminicídio contra uma mulher quilombola

Tainara, 27 anos, quilombola, mãe de duas meninas, desapareceu no dia 9 de outubro; o caso foi denunciado como feminicídio e o ex-marido da vítima é o principal suspeito
Por Redação Odara
Tainara dos Santos tinha 27 anos e era quilombola da comunidade de Acutinga Motecho, em Cachoeira (BA). Trancista, mãe de duas meninas de 11 e 2 anos, ela era conhecida na comunidade pela generosidade e afeto, pela força e pela arte nas mãos. Ela desapareceu no dia 9 de outubro de 2024.
Naquele dia, Tainara foi a uma lan house com seu ex-companheiro George Anderson Santos, com quem teve uma relação marcada por brigas e agressões, testemunhas descreveram o medo que ela sentia. Depois disso, a última vez que a jovem foi vista foi no porto de Cachoeira, na companhia de George e outros homens não identificados.
George declarou inicialmente, que naquele dia teria deixado Tainara em um posto de gasolina, numa localidade conhecida como “KM 25”. Mas em seguida, apresentou outras duas versões diferentes à polícia. Desde então, nenhuma pista concreta, nenhuma resposta, nenhuma confissão.
Na última quarta-feira (9), quando o caso completou 6 meses, familiares, amigos, ativistas e movimentos de mulheres negras ocuparam a frente da Câmara Municipal de Cachoeira para cobrar o que já deveria ser obrigação do Estado: justiça e apoio à família. Com cartazes, falas emocionadas e firmeza na denúncia, o ato foi um grito coletivo diante do abandono institucional.
“É um sentimento de revolta porque a gente não acha nada de Tainara, a gente não sabe como Tainara foi assassinada. As filhas de Tainara, todo dia pedem tanto a mim, quanto a mainha, uma resposta. Quando a gente sai, elas acham que a gente vai sair, vai chegar com a resposta de onde está a mãe delas”, disse Itamara Santos, irmã da vítima.
A QUEM IMPORTA A VIDA DAS MULHERES NEGRAS?
Tainara vivia sob medida protetiva. Denunciou o ex-companheiro. Pediu ajuda. O Estado sabia. E mesmo assim, foi ignorada. A violência doméstica que sofria não foi levada a sério. O alerta que deu, virou estatística. De acordo com a família, o único apoio que têm recebido vem dos movimentos de mulheres. A Prefeitura de Cachoeira, além de não oferecer suporte na busca por Tainara, também tem negado atendimento terapêutico para a filha mais velha da jovem.
A filha de Tainara, de 11 anos, apresenta sinais severos de sofrimento psicológico. “Ela está muito nervosa, fala que vai tirar a própria vida e sente muita raiva, principalmente da irmã mais nova, pois acredita que foi o pai dela quem fez isso com a mãe. Precisamos de apoio, mas estamos sendo ignorados”, relata a tia, emocionada.
Após seis meses de silêncio, a Prefeitura publicou uma carta aberta em suas redes sociais alegando que sempre esteve à disposição para auxiliar a família no que fosse necessário. A família, no entanto, desmente essas afirmações e denuncia o abandono institucional enfrentado desde o início.
O SILÊNCIO DO ESTADO
Nos dias 26 e 27 de março, a Justiça realizou as primeiras audiências de instrução e julgamento. Testemunhas relataram o comportamento agressivo e controlador de George. Mensagens trocadas entre eles reforçam o padrão de violência.
A advogada Laina Crisóstomo, da organização Tamo Juntas, que atua como assistente de acusação no caso junto ao Ministério Público, reforçou que a manifestação tem um papel fundamental para romper com a tentativa de isolamento e silenciamento que historicamente afeta as famílias de vítimas de feminicídio.
“A família de Tainara foi tratada com muita perversidade. Tentaram desqualificar a vítima, deslegitimar a dor da família, insinuar que estavam sozinhos, que ela não merecia o apoio de um movimento organizado. Mas esse ato deixa claro: Tainara não é um caso isolado, mais um caso de feminicídio acontece em Cachoeira e o Estado é parte desse crime”, destacou Laina.
Gabriela Ramos, ativista do Odara – Instituto da Mulher Negra, e coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto eu Não Chegar, declarou sobre o papel histórico das mulheres negras pressionando o funcionamento do sistema de justiça: “É importante fazermos essa ação coletiva, estar no ato e gritar por justiça. Mas é também fazer uma ação política que acorde o sistema judiciário para que as atuações deles estejam em conformidade com o que nós acreditamos. Não existe nenhuma instituição desse país que funcione e avance sem que seja a partir da atuação dos movimentos sociais de mulheres negras.”
Bianca Souza, advogada da Assistência Jurídica do projeto Minha Mãe Não Dorme, reforçou a centralidade da denúncia como instrumento político diante das violências que atingem de forma desproporcional as mulheres negras. “Nós estamos aqui para, mais uma vez, denunciar o Estado brasileiro. Não acreditamos na sua inocência. Esse é o mesmo Estado que mata, encarcera, violenta e silencia os nossos corpos. Não descansaremos enquanto mulheres negras continuarem tombando. É por isso que estamos em Marcha por Reparação e Bem Viver. Queremos viver e viver bem. Queremos justiça, memória, dignidade e todos os nossos direitos assegurados”.
Entre as vozes que ocuparam as ruas de Cachoeira, estava a da liderança quilombola Maria Abade, madrinha de Tainara e ativista da Rede de Mulheres Negras da Bahia. “Esse ato representa acolhimento. Acolhimento entre nós, acolhimento por parte dos movimentos, das instituições que caminham com a gente. Mas ao mesmo tempo, o que eu carrego hoje é um sentimento de impotência. Porque tiraram de nós até o privilégio de enterrar. Tiraram o direito de dizer às filhas dela onde a mãe está”, declarou emocionada.
FEMINICÍDIO TEM COR E ENDEREÇO
Os dados reforçam o que os testemunhos escancaram. Conforme o relatório Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, feminicídio foi a segunda maior causa de assassinatos contra quilombolas entre 2018 e 2022, totalizando 31,25% dos casos, logo abaixo das mortes por conflitos fundiários (40,62%). O Nordeste é a região com maior número de feminicídio de quilombolas.
Enquanto os números sobem, o investimento em políticas públicas para mulheres negras segue estagnado, ou em muitos casos, inexistente. “As poucas políticas que existem não chegam às mulheres quilombolas. Tainara não foi protegida porque era mulher, negra, quilombola e pobre. Isso é o que o Estado está dizendo quando se cala. Esse silêncio afeta muitas famílias que todos os dias perdem as suas filhas, perdem as suas mães, perdem as suas netas. Enfim, são famílias destruídas em razão da ausência de políticas públicas efetivas do Estado”, finalizou Laina.
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